terça-feira, 3 de novembro de 2009

O comércio

Num texto intitulado “Eremita em Paris”, Italo Calvino, que tinha nessa cidade “uma casa de campo”, ou seja, um lugar onde ficava tranquilo, longe das suas relações familiares e sociais, fala sobre o comércio. Escreveu ele: “Tomemos as lojas, que constituem o discurso mais aberto, o mais comunicativo que uma cidade pode exprimir: lemos todos uma cidade, uma rua, um bocado de passeio seguindo a fila das suas lojas. Há lojas que são como capítulos de um tratado, lojas como artigos de uma enciclopédia, lojas como páginas de jornais.” Eu, que estou aqui a escrever num jornal, no intervalo da montagem de duas novas lojas, uma online e outra de porta para a rua, espequei a olhar para esta frase. Não é nada que não soubesse ou não sentisse, mas vê-lo assim bem (d)escrito, é interessante. Calvino exemplifica a seguir: “Em Paris, existem lojas de queijos onde estão expostos centenas de queijos todos diferentes, cada um etiquetado com o seu nome, queijos envoltos em cinza, queijos com nozes: uma espécie de museu, um Louvre dos queijos. (…) Se amanhã começar a escrever sobre queijos, posso sair à rua para consultar Paris como se fosse uma grande enciclopédia de queijos.” Esta dimensão do comércio como conhecimento e cultura nem sempre é devidamente valorizada num plano de negócios. Mas deveria sê-lo. Basta pensar nalgumas lojas de que gostamos, lojas que se mantiveram ao longo de gerações porque para além de géneros tinham exaustividade de conhecimento – mesmo que num minúsculo território. Comércio com saber, com personalidade, com alma. Quando hoje falamos de cidades criativas, essa maravilha que encanta presentemente tanta gente como the next big thing, não falamos de nada que seja novo. Na Revista de Comércio e Contabilidade, Fernando Pessoa, esse dedicado empregado de escritórios comerciais para além de escritor, desenvolveu este tema: “A actividade social chamada comércio, por mal vista que esteja hoje pelos teoristas de sociedades impossíveis, é contudo um dos dois característicos distintivos das sociedades chamadas civilizadas. O outro característico distintivo é o que se denomina cultura. Entre o comércio e a cultura houve sempre uma relação íntima, ainda não bem explicada mas observada por muitos. É, com efeito, notável que as sociedades que mais proeminentemente se destacaram na criação de valores culturais são as que mais proeminentemente se destacaram no exercício assíduo do comércio. Comercial, eminentemente comercial, foi Atenas. Comercial, eminentemente comercial, foi Florença.” Nem sempre nos lembramos disto, enquanto as notas passam por cima do balcão das lojas da cidade. Mas, sim, fazer lojas pode ser muito mais do que uma actividade económica. Possui uma dimensão cultural, de investigação, classificação e divulgação; inclui uma dimensão social, de troca e valorização da comunidade; e claro, uma dimensão económica, movimentando inúmeros agentes e gerando riqueza. Executado com criatividade, tudo isto tem muito mais graça. Publicada a 5 de Setembro de 2009

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