terça-feira, 16 de março de 2010

A Cidade Triste e Alegre

"Este livro é, provavelmente, o maior tesouro que possuo. Como todos os tesouros realmente dignos desse nome, foi caçado. Ou seja, avistado e descoberto muitos anos antes, desejei-o correndo feiras e alfarrabistas pelos anos seguintes, no seu encalço. Um dia, foi-me oferecido. Nunca mais me cansei de o abrir, de o olhar, para trás e para a frente, e de o exibir como quem partilha o mais precioso dos segredos com os amigos. O livro chama-se Lisboa, Cidade Triste e Alegre e tornou-se um mito. Por todos os motivos.

Corriam os anos 50 quando dois jovens arquitectos pegaram nas suas máquinas e, durante muito tempo, fotografaram a sua cidade. Lisboa raramente foi assim vista, com tanta intimidade e humanidade, com tanta curiosidade e deslumbramento. Das 6.000 fotografias originais, Vítor Palla e Costa Martins escolheram 200 e paginaram-nas como quem monta um filme, com poesia e invenção. Primeiro editaram fascículos e depois, o conjunto desses fascículos deu um livro. Um livro que é fotográfico, gráfico e cinematográfico.

Nas muitas páginas que no final da obra, comentam cada uma das fotografias e as suas opções, os autores escreveram: “ Por esta altura já deve ter-se tornado claro que este livro não quis retratar acontecimentos espectaculares ou sensacionais — mas antes o espírito do ordinário, do quotidiano, das pessoas a serem elas próprias (e não transtornadas pelo excepcional) movendo-se dentro dum ambiente familiar, conhecido.” E isso foi feito também, referem, com “ternura, a ternura pura e simples”.

Quase 50 anos depois, essa Lisboa que era triste e alegre é uma cidade que já mal existe. Não me refiro às figuras típicas que se perderam naturalmente com a voragem da modernidade, como as varinas e os polícias sinaleiros, mas à vida. Nessa Lisboa, vivia-se na rua, e ao passar das páginas é quase possível ouvir gritos e canções, o chiar dos eléctricos e os risos dos miúdos. Lisboa era então uma cidade apropriada pelos habitantes, que se encostavam com o mesmo à vontade às suas esquinas com que hoje se sentam no sofá diante da televisão - mas agora em casas de portas bem fechadas, cada vez mais a caminho dos subúrbios e cada vez mais sózinhos. Chamava-se então simplesmente rua àquilo que hoje denominamos pomposamente espaço público, mas que se tornou muito menos das pessoas e tão mais do trânsito, da publicidade, da pressa e do estorvo.

Tenho-me lembrado muito desta Lisboa que ficou incólume guardada dentro do milagre que é este livro. Que os grandes projectos e opções são importantes, sem dúvida, mas, neste momento, urgente mesmo é que Lisboa seja olhada e tratada com a mesma ternura e inteligência que guiaram este livro: no seu quotidiano, nos seus gestos ordinários, nas pequenas e preciosas coisas que tornam os dias de quem por ela passa e vive mais felizes."

Crónica de Catarina Portas para o Público, 7 de Julho de 2007. Mais sobre a nova edição de "Lisboa, Cidade Triste e Alegre" aqui.

1 comentário:

Aureni Ribeiro disse...

Adorei seu blog! aumentou e muito a minha vontade de conhecer Portugal!

Abraços!