segunda-feira, 20 de maio de 2013

A menina do telefone

Mark Mitchell, um informático britânico, comprou um iphone. Abriu a caixa, ligou-o, começou a brincar com ele. A explorá-lo, como qualquer um de nós faria com uma máquina nova nas mãos. Até que experimentou a câmara fotográfica. E foi aqui que a história dele deixou de ser igual à nossa. Pois Mitchell descobriu que alguém, antes dele, tinha usado o seu telefone para registar meia dúzia de fotografias. No seu telefone por estrear guardavam-se dois retratos de uma rapariga chinesa, envergando uma farda branca com risquinhas cor de rosa, numa linha de montagem.

A rapariga ri simplesmente numa das fotografias. Noutra, com os duas mãos enluvadas, faz um v de vitória. Nas outras quatro fotografias, apenas a fábrica. A história tornou-se rapidamente conhecida quando “markm49uk” acedeu ao site“macrumours.com” e revelou a sua surpresa. Num instante, a busca foi lançada: quem é a rapariga? Soube-se que trabalha na FoxConn, uma fábrica em Shenzhen que monta iphones para a Apple. Os seus responsáveis não quiseram revelar o seu nome mas adiantaram que as fotografias tinham sido provavelmente um teste do equipamento e, por descuido, não tinham sido apagadas. Acrescentaram que o erro não implicaria qualquer despedimento, pois na verdade era apenas "a beautiful mistake”.

O erro tem de facto qualquer coisa de belo. Não é suposto que nome próprio algum assine uma máquina montada numa fábrica. Quando muito, se dermos por um papelinho minúsculo com um número de controle de qualidade, já chega. Mas ela não é um nome nem um número, é um sorriso. Diz: fui eu que fiz. E, num par de fotografias, toda a revolução industrial ganha um rosto. Faz sentido que cante vitória pois ela venceu o sistema.

No admirável mundo nosso que já não é novo e por vezes tem pouco para admirar, no qual as máquinas e pessoas tratadas como máquinas nos montam os aparelhos com os quais vivemos, já não há lugar para graças humanas como esta. Parece que só os aparelhos têm direito a exibir as suas gracinhas, as do novo sistema, das novas funções, das últimas tecnologias inventadas certamente por pessoas que adivinhamos engraçadas porque imaginativas mas que nunca saberemos quem são, também elas escondidas para sempre atrás de um único nome, o da marca.

Outra informação interessante que a FoxConn se apressou a comunicar à imprensa é que a rapariga não pretendia ser identificada. Mais, teria ficado tão aflita que a empresa até lhe oferecera um dia de folga para recuperar da emoção. Sorte a dela pois segundo um relatório do China Labor Watch, por ali os funcionários não costumam ter mais do que dois dias de folga mensais. Se excepções como esta se tornassem regra, se ao comprarmos um produto nos confrontássemos com o rosto de quem o fez, talvez isso até não fosse uma má ideia. Entre crianças a coser sapatos e jovens asiáticas exploradas até ao tutano a empacotar as t-shirts que compramos por quase nada, ficaríamos a conhecer melhor o mundo em que vivemos. Porque, para além do packaging e do marketing, lhe víamos o rosto."

Crónica de Catarina Portas para o Público de 13 de Setembro de 2008.

Vem isto a propósito de um artigo recente do New York Times. “As long as we keep paying companies to be unsustainable and unethical, they will be” - pois, é isto que acontece quando compramos uma t-shirt demasiado barata. Se os produtos que compramos trouxessem imagens de quem os produz e informação sobre as condições em que o fizeram, alguma coisa começaria a mudar no mundo. Pois já começou. Um dia, chegamos lá."

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