quinta-feira, 13 de junho de 2013

ANTÓNIO, O SANTO POP


"O 13 de Junho é dia de Santo António mas também de celebração de um outro António, que nesse dia, corria o ano de 1984, nos deixou a pensar em milagres. Foi recentemente, e muito justamente, canonizado como santo padroeiro do panteão pop deste país com o nome que decidiu tomar em vida, António Variações.
O que fará um santo nos nossos dias? Como é que se passa a ter hagiografia, mais que biografia? Será à partida um ser com algo de excepcional, uma diferença e um mistério, e cuja busca e perseverança lhe trilham um destino maior do que lhe era prometido. Um ser com um dom que é também generosidade, capaz de tocar os outros, sacudindo-lhes espíritos, abrindo-lhes ideias, soprando-lhes felicidade. Um homem, cuja história da vida, da morte e da sua herança se torna à distância exemplar, que poderemos um dia contar aos outros como uma quase lenda, de como a diferença, a vontade, a verdade e a arte podem vingar até a morte mais injusta.
Nascido em berço católico, Variações afirmou um dia “Agora respeito todas as religiões e sou demasiado liberto para as aceitar”. Compôs uma canção ao seu Anjo da Guarda e cantou-a um dia, despindo-se, de tronco nu, diante de uma plateia fardada numa base militar: “Ele não usa a arma / Ele não usa a força / Usa uma luz / Com que ilumina a minha vida”.

Variações lançou luzes em muitas direcções. Na Lisboa cinzenta desses anos, fez da excentricidade o seu hábito e vestiu-se como mais ninguém tinha coragem, abrindo caminho a todos os outros que ansiavam também em exibir a sua diferença. “Nunca me vesti como o faço por provocação aos outros, mas como um acto de liberdade para comigo próprio” disse (e cantou “Lá vai o maluco / Lá vai o demente / Lá vai ele a passar / Assim te chama toda essa gente/ Mas tu estás sempre ausente / Não te conseguem alcançar”).

Na sua obra, foi ao rock e experimentou-o com as suas raízes folclóricas minhotas, com genuinidade e sem vergonha, coisa rara nesses tempos ainda de campos extremados. “Como português andava deprimido com a falta de orgulho nacional e tudo o que puder fazer para virar as pessoas para a sua terra, eu faço”. A sua Nossa Senhora chamava-se Amália, “basta-me ouvir a voz dela para ter visões” confessou, e enlevou a diva caída em desgraça pós-revolução, levando-a de volta para um palco magno consigo, gravando o “Povo”, dedicando-lhe discos. Na sua música, como na sua vida, foi sexualmente livre e pôs um país inteiro a trautear a “Canção do Engate” e outras que tais, explícitas mas mais que libertinas libertárias. E desamarrou também os nós que lhe prendiam o destino de miúdo nascido na aldeia a sonhar com o espectáculo. Autodidacta musical, gravou aos 37 anos mas fê-lo na companhia dos maiores, com músicos dos GNR no primeiro LP e dos Heróis do Mar no segundo, editado nos dias do fim, aos 39 anos. As voltas do destino e a qualidade da obra vingaram-lhe todas as ambições quando as suas maquetes caseiras, regravadas pelos Humanos, lhe deram os primeiros lugares dos tops, vinte anos depois da morte.

Por tudo isto, nestes dias, seja no Santo António, seja nas comemorações do 10 de Junho ou seja no Arraial Pride, temos todos algo a agradecer-lhe. Pois António foi a voz de um homem livre. Santo pop e padroeiro da liberdade.

Nota: este texto é dedicado ao João Maia, que um dia assinará um filme sobre Variações, esperemos."

Crónica de Catarina Portas para o jornal Público de 16 de Junho de 2007.

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