quarta-feira, 10 de julho de 2013

Lenço Tabaqueiro

 
Antes de ir para o campo, e para as lides de mais uma jorna sob a torreira do sol, o homem nunca se esquecia de levar à cabeça o chapéu. Mas porque ainda assim o suor havia de se provar inevitável, enrolava à volta do pescoço um lenço de algodão, mais ou menos cuidadosamente dobrado (consoante houvesse pressa ou paciência) que ajudasse a manter o rosto seco. Como faziam os cowboys dos filmes americanos, que ele não via, mas invertido: a ponta para trás, o nó para a frente.

Outros haviam que o punham à cintura, preso ao cinto das calças, para ajudar a secar ou limpar as mãos, aquele lenço quadrangular que podia vir em cores diferentes mas se popularizou em vermelho (mesmo em terras do norte) porque é uma cor que também vai bem com tudo e tem a vantagem de dar sempre um toque de jovialidade. A toda a volta, as listas brancas e algumas pretas rematavam uma certa graciosidade, que o trabalhador, lá por ser rural, também não tinha que dispensar. Fosse ele lavrador ou cabreiro, destinado estivesse à ceifa ou à vindima. E talvez por isso tenha passado a integrar, até hoje, a fatiota dançável de diversos grupos de folclore.

Ainda durante o reinado de D. José I, corria o ano de 1774, instalou-se em Alcobaça aquela que viria a ser uma importante fábrica de "lenços, cambraias e fazendas brancas", e que havia de produzir este modelo, baptizado por isso "O Alcobaça". E foi fazendo moda de tal maneira que acabou mesmo por chegar à cidade, onde, sem cabras nem foices por perto, havia de ter outro uso. E, num piscar de olhos, foi adoptado pelos consumidores de rapé para limpar o pingo do nariz. Passou a chamar-se Lenço Tabaqueiro e ganhou direito a menção na literatura da época - do cocheiro com o lenço atado ao pescoço da Sibila de Agustina, ao tocador de bombo d' A Tragédia da Rua das Flores queiroziana, que deita o seu sobre o ombro, ou o abade d' Os Teles de Albergaria de Carlos Malheiro Dias, que o acena para ajudar à veemência da exclamação. Dele se socorreu também Raul Brandão na descrição de uma personagem: "Porque tudo nesse homem, a quem já em rapaz os amigos diziam ser do tempo dos lenços tabaqueiros, era radicado e com raízes tremendas no passado."

Das páginas dos livros para as prateleiras d' A Vida Portuguesa no ano da graça de 2013, o Lenço Tabaqueiro repete o furor. Continua perfeito nas utilizações costumeiras ou como guardanapo das mesas modernas - mas sempre na cor que o povo vivaz escolheu.






“Eu também fui segador” – rememorava o Ti Marcolino – “também eu levei a eito longos dias de segada, sem descanso, vergado pela fome nos agostados tapados da Resanha. Também eu limpei muitas vezes o suor da testa, também ela refegada, com o encardido lenço tabaqueiro que me envolvia o cachaço e que, ainda agora, mantém a forma ondulada das searas e a rusticidade afiada das fragas. Também eu saboreei o doce descanso à sombra do velho carrasco, que já só existe no saco de grão bafiento da minha memória. Também eu medi dezenas de vezes com o olhar a largura da courela, sempre em conta de três, três longos regos, porque só a tríade integra a unidade deste dualismo humano do qual não me consigo libertar.”

António Sá Gué
Blogue Torre de Moncorvo
 

"Mas o cocheiro era o mesmo, com o seu lenço tabaqueiro atado ao pescoço, a sua sem-cerimónia jovial, que fazia dos passageiros todos alavancas para alçar uma roda dos atoleiros, ajudantes fiéis na emenda duns tirantes ou dum eixo que se partira."
"A Sibila"
Agustina Bessa-Luís

"O abade sacudiu o enorme lenço tabaqueiro e a nova estalou, assombrosa, enorme, ao sabor das coisas enormes de Portugal: o brasileiro da Vista Alegre fora agraciado com a carta do conselho!"
"Os Teles de Albergaria"
Carlos Malheiro Dias

"O filho da marqueza inclinou-se, e emquanto o padre, correspondendo ao cumprimento, fungava assoando-se no lenço tabaqueiro, o presidente inclinou-se para elle, como para chegar á caixa de rapé, que tinha na frente, e, emquanto tirava uma pitada, segredou-lhe."
"Vasco"
Arthur Lobo D'Avila

"O segundo acto terminava. O regente, aos pulinhos, brandia a batuta; os arcos das rabecas subiam, desciam, com o movimento de serras apressadas; agudezas de flautins sibilavam; e o bombo, de pé, de óculos, com o lenço tabaqueiro deitado sobre o ombro, atirava baquetadas à pele do tambor, com uma mansidão sonolenta."
"A Tragédia da Rua das Flores"
Eça de Queiroz

"Porque tudo nesse homem, a quem já em rapaz os amigos diziam ser do tempo dos lenços tabaqueiros, era radicado e com raízes tremendas no passado. Teve todos os cultos antigos: o da família, o da nobreza, o da religião. Viveu pobre, num pobre quarto andar; morreu amargurado por não ter realizado nenhum dos seus sonhos. Estou a ouvi-lo dizer-me: Odeio-os! odeio-os!"

"Vale de Josafat - Memórias - Volume III"
Raul Brandão


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