quinta-feira, 3 de outubro de 2013

"Comprar é um ato político"


"No Largo do Intendente, em Lisboa, a ex-jornalista abre esta semana a terceira loja A Vida Portuguesa, mais uma frente de batalha pela produção nacional. Por Rosa Ruela texto e Marcos Borga fotos. Revista Visão, 3 de Outubro de 2013.

A conversa, no pátio interior da Casa Independente, vizinha de mais uma loja A Vida Portuguesa, que vende produtos genuinamente nacionais, havia de ser acompanhada por um delicioso hummus, um prato do Médio Oriente. Catartina Portas bate-se pelo feito em Portugal mas não é fundamentalista, nem à mesa. "A diferença é valiosa", dirá, quando questionada sobre os irmãos, Miguel e Paulo, ao fim de quase duas horas de gravador. Duas horas em que começou por defender o "comércio delicado" e acabou a falar da morte.

No início de agosto, arrendou um quarto, no Largo do Intendente. Foi só para ficar perto da nova loja?
Além da questão prática, queria conhecer a Mouraria e só se conhece um bairro quando se adormece e acorda nele.

E que tal?
Estou a adorar, vai custar-me muito voltar para a Lapa (risos). Desde que (o presidente da Câmara de Lisboa) António Costa decidiu que uma das prioridades do seu mandato era transformar esta zona, que estava sequestrada pelo tráfico e pela prostituição, ela mudou brutalmente. E ainda vai mudar mais. Espero que não mude ao ponto de ficar irreconhecível, mas que mude o suficiente para o bairro ser bom para todos.

O que a atraiu na Mouraria?
No início, era a imprevisibilidade. Em qualquer outro bairro de Lisboa, sei o tipo de gente e de lojas que vou encontrar, as conversas que vou ouvir na rua. Aqui, não. Nos primeiros tempos, punha-me à janela e ficava uma ou duas horas a ver o bairro a acontecer. E acontecem coisas fascinantes, porque é um bairro extremamente cosmopolita. No outro dia, estava a olhar par auma dúzia de pessoas e, só à distância, podia dizer que havia, pelo menos, oito nacionalidades diferente. Tudo residentes.

Os turistas, se calhar, ainda ficam pelo Martim Moniz.
Deviam cá vir porque há muitos projetos interessantes, como o Lar de Residências, o Café das Joanas, a Casa Independente ou a Cozinha Popular da Mouraria. São de pessoas que se têm aproximado do bairro de uma forma correta, porque há sempre o perigo de os novos expulsarem os velhos. penso que as pessoas que começaram uma nova vida no Bairro Alto, nos anos 80, sentiram qualquer coisa parecida com o que se está a passar aqui.

Foi por isso que decidiu abrir aqui uma nova loja?
Soube, de uma forma curiosa, que os antigos armazéns da Viúva Lamego estavam para arrendar: na inauguração da exposição da Joana Vasconcelos, em Versalhes, António Costa perguntou-me se queria arrendar uma loja no Intendente. Andei a pensar na vida, um pouco aflita porque a altura não é a mlehor para abrir uma loja de 500 metros quadrados num sítio como o Intendente... Pensei muito no investimento, não queria endividar-me demasiado.

Vir para aqui é um risco?
É um risco calculado, mas também há alguma loucura. Até hoje, tive cuidado. Comecei o negócio com mil euros, fui reinvestindo o que ganhei, e é assim que temos crescido.

Defende que, cada vez que vamos às comoras, podemos mudar o mundo. Acredita mesmo nisso?
No comércio, há uma dimensão cultural e uma dimensão política. Quando comecei a ir às fábricas e a conhecer as pessoas que fazem as coisas, os seus problemas, as suas histórias, percebi muita coisa. E apeteceu-me intervir. O facto de termos um comércio cada vez mais igual e massificado, gerido por entidades cada vez maiores e mais poderosas, desequilibra a relação de forças entre os intervenientes. Quando votamos, escolhemos como queremos ser governados, quando vamos às compras, escolhemos a quem damos o nosso dinheiro. Podemos dá-lo a uma empresa que cumpre as regras ou a uma empresa que não cumpre as regras. Determinamos, dessa forma, o mundo em que queremos viver, com mais ou menos direitos dos trabalhadores, por exemplo. Consumir é um ato político.

A crise veio ajudar?
A crise acordou-nos um bocadinho para isso, mas também faz com que muita gente tenha a tendência de escolher o produto mais barato. Só que há um barato que sai muito caro. Quando escolhemos dar menos cinco cêntimos por um litro de leite de uma marca da distribuição, não sabemos de onde vem. Provavelmente, não foi comprado em Portugal. Mas, se começo a comprar leite que não é português, posso estar a atirar para o desemprego os produtores portugueses e, a seguir, dos meus impostos vai sair o seu subsídio de desemprego. Será que poupei dinheiro?

Já a ouvi falar em "comércio delicado". Quer explicar?
O termo não é meu, é do francisco Palma Dias (que aplica essa ideia ao seu conceito de turismo, em castro marim). É um comércio que respeita os vários intervenientes na cadeia e respeita os consumidores, dando-lhes informação sobre aquilo que estão a comprar. O lucro não é a única motivação e pode ajudar-nos a termos cidades melhores e vidas melhores. As coisas nunca serão perfeitas, mas é nosso dever tentar que sejam mais justas. Se não, o que andamos aqui a fazer?

A manufatura entra nessa equação?
Sempre tive muito respeito pelo trabalho das mãos, e uma das coisas de que me apercebi ao visitar estas fábricas foi que ainda há um grande saber fazer. O facto de nos termos modernizado mais tarde faz com que ainda tenhamos isso. E esse saber fazer deve ser acarinhado, ferozmente salvaguardado. É importante as pessoas perceberem que a manufatura é uma riqueza nos dias de hoje. O nosso atraso pode ser o nosso avanço. E com as novas tecnologias, mesmo estes pequenos negócios poderão chegar a todo o mundo. Muitas vezes, basta fazer um trabalho de pesquisa para ver o que ainda existe e juntar tudo no mesmo sítio. O conceito é adaptável a qualquer país. Aliás, já temos uma cópia espanhola.

A Vida Portuguesa é uma missão?
Tem sido a maior aventura da minha vida. Começou com uma missão quase impossível, que era os portugueses gostarem dos seus próprios produtos, e hoje continua a crescer, a empregar mais gente e a dar mais visibilidade às marcas. Há uma coisa muito boa que me faz dormir bem todas as noites: aquele balcão é uma frente de batalha da produção portuguesa. Quando estou a vender um produto, sei quem foram as pessoas que o fizeram e sei que a vida delas fica melhor por eu vender aquele sabonete ou aquela vassoura. Sei que contribuí para a vida de muitas outras pessoas.

Já andava a pensar em abrir mais uma loja em Lisboa?
Depois de valorizar os pequenos produtos, a evolução para a área de casa pareceu-me natural e lógica. Queria, há muito tempo, alargar o espaço do Chiado, mas o metro quadrado ali é proibitivo para lojas independentes. E não é uma especificidade de Lisboa. Como as multinacionais entraram no retalho obsessivo, as cidades, agora, parecem corredores de aeroporto.

O seu pai (o arquiteto Nuno Portas) antecipa que, no futuro, os centros das cidades vão ser só hotéis, uma coisa monótona.
No ano passado, fechou a Nova Açoriana, uma mercearia muito antiga (na Rua da Prata), porque o prédio foi comprado para fazerem um hostel. Tinham uma outra entrada no rés do chão mas desalojaram a mercearia. É aquilo a que chamo matar a galinha dos ovos de ouro. O setor da hotelaria não percebe que este comércio característico e charmoso atrai as pessoas? Costumo dar um exemplo fácil de entender: metade das reportagens sobre Lisboa publicadas na imprensa internacional traz uma fotografia da Luvaria Ulisses; nunca lá vi uma fotografia da H&M, que tem 2 mil metros quadrados e está do outro lado da Rua do Carmo.

Isto não acontece só em Lisboa, infelizmente.
É um problema de muitas cidades do mundo. As marcas tornaram-se globais e vão ocupando o comércio que existia, mais original e diversificado. Há uma situação semelhante em Paris, a das livrarias à volta da Sord+bonne porque, de repente, chegaram as marcas de roupa e começaram a apagar mai. A câmara, então, decidiu ir comprando esses espaços e subalugá-los aos livreiros, a preços bonificados. Portanto, há soluções. Não são fáceis, mas encontrá-las é um dos grandes desafios de quem gere uma cidade com passado.

(...)

Desta vez, andou pelo País à procura de móveis para a loja, não foi?
Temos grandes armários que vieram das salas de arquivo de uma fábrica de Tomar, móveis que eram de uma loja de aprestos para barcos, em Setúbal, e uma mercearia inteira de Braga - os armários, o balcão, até a faca do bacalhau! Combinei com o sr. José Braga que ele viria na abertura, ver a segunda vida da sua mercearia. Pusemos anúncios no nosso Facebook, tivemos muitas respostas de vários pontos do País e aconteceu uma coisa curiosíssima: recebemos mensagens de pessoas a dizer-nos: "Na minha cidade, há uma mercearia e uma farmácia fechadas, porque não abrem aqui uma loja?" As pessoas não querem que esses espaços desapareçam... (...)"


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