terça-feira, 9 de setembro de 2014

O segredo de um negócio de família é ser cem por cento tradicional

Uma família lutou contra a crise da indústria têxtil. Outra apostou no turismo industrial. Uma nunca parou de crescer, mesmo quando esteve em risco de perder capital, e outra expandiu-se por todo o país sustentada num imaginário de chocolate. Qual é a chave do sucesso nos negócios de família?


"Chega-se à Lameirinho, empresa familiar de têxtil-lar fundada em 1948 em Pevidém, Vale do Ave, Guimarães, por uma rua que leva o nome da família Coelho Lima. Tempos houve em que não era só a rua, mas uma cidade inteira a trabalhar para aquela que, nos anos 60, chegou a ser a maior empresa de têxtil do mundo, a Coelima — empresa que detinha habitação social, supermercado próprio, unidades de manutenção com formação em engenharia, actividades culturais e até equipas de ciclismo e de futebol.
O fundador da Lameirinho, Joaquim Coelho Lima, era o irmão mais novo do fundador da Coelima. Exceptuando o nome e a coincidência do ramo têxtil, as empresas não têm qualquer relação. Nos anos 80, a Lameirinho e a Coelima, juntas, eram “a” cidade: “Quase 20 mil pessoas dependiam directa ou indirectamente destas empresas. Hoje, das grandes têxteis da zona, não ficou nenhuma com a dimensão da Coelima”, conta à Revista 2 Paulo Coelho Lima, 45 anos, um dos administradores da Lameirinho, neto do fundador.
Resistir 66 anos no sector têxtil em Portugal não é insignificante. Talvez por isso, “resistir” não seja a palavra certa para falar da Lameirinho, hoje a maior empresa têxtil-lar do país — com cerca de 700 trabalhadores, está no lugar 670 das mil maiores empresas portuguesas de 2013, segundo o Diário Económico. Acompanhando a expansão e o crescimento do sector na década de 1960, a Lameirinho virou-se para o mercado internacional, pelo que se tornaria imune a momentos turbulentos na indústria nas décadas seguintes: “A nossa vocação é a internacionalização e, até aos anos 90, em que adquirimos uma empresa que nos fez reconquistar parte do mercado nacional, a nossa produção era 100 por cento para exportação. Daí que a empresa tenha ficado um pouco à margem de algumas crises e da instabilidade que houve no pós-25 de Abril”, explica Coelho Lima.
Contenção e prudência guiam o discurso da família Coelho Lima. Já na terceira geração, a Lameirinho usa conceitos como “integridade e confiança” para a produção de lençóis para marcas próprias, mas também outras marcas populares no mercado nacional e internacional, como a Gant Home, Ralph Lauren ou a Zara Home. “Pode-se dizer que investimos na cama”, graceja Paulo Coelho Lima. Um investimento que, até certo ponto, “protegeu” a Lameirinho nas décadas de 70 e 80 quando as empresas do têxtil começaram a crescer de mais: “O problema é que, quando uma empresa no nosso ramo cresce, estamos a falar de crescer imenso: as máquinas produzem sempre muito e o mercado português, de 6 ou 7 milhões de habitantes na época, hoje de 10 milhões a decrescer, não tem capacidade para absorver 150 quilómetros de lençóis por dia. São milhões de lençóis por ano. Se não há mercado externo, não há alternativa de crescimento. Infelizmente para nós, ninguém compra lençóis todas as semanas. Excepto na hotelaria, o lençol doméstico não é consumível, não se gasta, pode durar uma vida inteira.” Apostar em artigos de “grande valor acrescentado” foi como a Lameirinho conseguiu “vingar” e garantir o sucesso nos Estados Unidos: “Criámos um espaço que estava completamente virgem e estamos orgulhosos de dizer que fazemos parte de uma alteração do próprio mercado têxtil-lar americano no que diz respeito aos produtos de alta qualidade. Nos anos 90, a Lameirinho foi pioneira nos EUA.”
Há um “segredo” que torna a Lameirinho diferente de empresas do sector: ser um negócio de família é uma mais-valia, diz Paulo Coelho Lima. Mas houve sempre “uma grande contenção da nossa parte; todo o capital disponível foi sempre reinvestido e reutilizado na própria empresa, e não para benefício pessoal, para que, em anos menos bons, pudéssemos ter algum fôlego. É isso que nos tem permitido estar um bocadinho à margem de algumas crises que foram muito difíceis. Também houve uma grande contenção nas despesas: quando a empresa dava muito lucro, não fizemos disparates.”


"Sucesso é uma palavra que José Vieira, 40 anos, quarta geração da empresa familiar de lápis Viarco, não quer usar. Não tem medo dele. Pelo contrário: fala, confiante, da   história e da tradição da sua empresa. “Podíamo-nos pôr aqui em bicos de pés e dizer que temos uma empresa que é centenária e estamos a exportar para ali e para acolá; que estávamos completamente escavacados há uns anos e agora estamos efectivamente numa situação de recuperação. E então? Vivemos do nosso trabalho, não há margem para fingirmos que somos o que não somos, tendo em consideração que somos uma pequena empresa num país esfrangalhado, onde as linhas de crédito desapareceram, em que temos de inventar todos os dias para arranjar soluções”, explica Vieira.
De novo, “contenção” é a palavra: “O sucesso hoje em dia mede-se em dinheiro. Somos muito bem sucedidos se facturarmos muito dinheiro e aqui nós estamos num processo de recuperação.” Em 2008, a Viarco perdeu, “de um dia para o outro”, o seu maior cliente, empresa da grande distribuição que correspondia a quase 35 por cento da facturação. Foi “o fim, a morte anunciada”. Começaram a levantar-se possibilidades: encerrar, vender, deslocalizar, “comprar na China, no Paquistão, pôr a marca e utilizá-la como arremesso comercial”, num qualquer lugar onde tudo fosse produzido às toneladas. Teria sido preferível se, no início dos anos 90, os sócios tivessem “arrasado a fábrica, com máquinas muito antigas, num edifício disfuncional”, no centro de São João de Madeira, e vendido o terreno a imobiliárias? Se assim tivesse sido, “os sócios teriam enchido os bolsos de dinheiro”. Mas Vieira percebeu que “esta infra-estrutura tem valor por si, não como terreno, mas efectivamente por aquilo que alberga: é uma fábrica de lápis, a única no país”. Fabricar lápis significa, diz, estar em relação directa com o desenvolvimento humano: “A criança aprende a riscar, a expressar-se plasticamente, aprende as letras e os números com o lápis. É algo que nos é íntimo.”
José Vieira está consciente de que a Viarco, marca produzida na Fábrica Portuguesa de Lápis desde 1936 pela família Vieira Araújo (os lápis já eram produzidos desde 1907, mas ainda não havia a marca), não pode ser então medida dentro da “lógica do sucesso pelo dinheiro”. “Isto existe há mais de 100 anos. Temos de ter a capacidade de pensar que tem de haver mais cem. Hoje, só se pensa no curto prazo e está toda a gente obcecada com os resultados no trimestre, no semestre, no final do ano. Os senhores da banca gostam dos balancetes, de balanços, de resultados. Nessa lógica, nada disto faz sentido. Este é um projecto claramente de longo prazo, não há aqui uma expectativa de podermos ganhar muito dinheiro. Existe é a possibilidade de potenciarmos a vida da organização por muitos anos. Esse é que é o nosso principal objectivo.”
Há uma relação afectiva entre familiares de terceira e quarta geração com as suas empresas. Não foi só porque quando era miúdo gostava de ir para fábrica que Vieira acabou por comprá-la em 2011 aos outros sócios familiares da sua mãe (primos e tios) junto com a mulher, Ana Costa. Parece que, afinal, o “bicho genético” mordeu. “Numa circunstância desta natureza, existe uma parte afectiva e existe uma parte de negócio sem a qual não há afectividade que resista”, diz. Não quis vender porque reconhece o valor de pertencer a uma família ligada à indústria. “Desde o meu bisavô que vemos as matérias-primas a serem transformadas em coisas. O dinheiro pelo dinheiro não é o que mais importa; entre ter dinheiro que se gasta e dinheiro investido numa coisa que se produz, dentro daquilo que é o nosso código genético, faz mais sentido ter uma coisa que se produz do que ter dinheiro no bolso para estourar.”
"Sucesso é uma palavra que José Vieira, 40 anos, quarta geração da empresa familiar de lápis Viarco, não quer usar. Não tem medo dele. Pelo contrário: fala, confiante, da   história e da tradição da sua empresa. “Podíamo-nos pôr aqui em bicos de pés e dizer que temos uma empresa que é centenária e estamos a exportar para ali e para acolá; que estávamos completamente escavacados há uns anos e agora estamos efectivamente numa situação de recuperação. E então? Vivemos do nosso trabalho, não há margem para fingirmos que somos o que não somos, tendo em consideração que somos uma pequena empresa num país esfrangalhado, onde as linhas de crédito desapareceram, em que temos de inventar todos os dias para arranjar soluções”, explica Vieira.
De novo, “contenção” é a palavra: “O sucesso hoje em dia mede-se em dinheiro. Somos muito bem sucedidos se facturarmos muito dinheiro e aqui nós estamos num processo de recuperação.” Em 2008, a Viarco perdeu, “de um dia para o outro”, o seu maior cliente, empresa da grande distribuição que correspondia a quase 35 por cento da facturação. Foi “o fim, a morte anunciada”. Começaram a levantar-se possibilidades: encerrar, vender, deslocalizar, “comprar na China, no Paquistão, pôr a marca e utilizá-la como arremesso comercial”, num qualquer lugar onde tudo fosse produzido às toneladas. Teria sido preferível se, no início dos anos 90, os sócios tivessem “arrasado a fábrica, com máquinas muito antigas, num edifício disfuncional”, no centro de São João de Madeira, e vendido o terreno a imobiliárias? Se assim tivesse sido, “os sócios teriam enchido os bolsos de dinheiro”. Mas Vieira percebeu que “esta infra-estrutura tem valor por si, não como terreno, mas efectivamente por aquilo que alberga: é uma fábrica de lápis, a única no país”. Fabricar lápis significa, diz, estar em relação directa com o desenvolvimento humano: “A criança aprende a riscar, a expressar-se plasticamente, aprende as letras e os números com o lápis. É algo que nos é íntimo.”
José Vieira está consciente de que a Viarco, marca produzida na Fábrica Portuguesa de Lápis desde 1936 pela família Vieira Araújo (os lápis já eram produzidos desde 1907, mas ainda não havia a marca), não pode ser então medida dentro da “lógica do sucesso pelo dinheiro”. “Isto existe há mais de 100 anos. Temos de ter a capacidade de pensar que tem de haver mais cem. Hoje, só se pensa no curto prazo e está toda a gente obcecada com os resultados no trimestre, no semestre, no final do ano. Os senhores da banca gostam dos balancetes, de balanços, de resultados. Nessa lógica, nada disto faz sentido. Este é um projecto claramente de longo prazo, não há aqui uma expectativa de podermos ganhar muito dinheiro. Existe é a possibilidade de potenciarmos a vida da organização por muitos anos. Esse é que é o nosso principal objectivo.”
Há uma relação afectiva entre familiares de terceira e quarta geração com as suas empresas. Não foi só porque quando era miúdo gostava de ir para fábrica que Vieira acabou por comprá-la em 2011 aos outros sócios familiares da sua mãe (primos e tios) junto com a mulher, Ana Costa. Parece que, afinal, o “bicho genético” mordeu. “Numa circunstância desta natureza, existe uma parte afectiva e existe uma parte de negócio sem a qual não há afectividade que resista”, diz. Não quis vender porque reconhece o valor de pertencer a uma família ligada à indústria. “Desde o meu bisavô que vemos as matérias-primas a serem transformadas em coisas. O dinheiro pelo dinheiro não é o que mais importa; entre ter dinheiro que se gasta e dinheiro investido numa coisa que se produz, dentro daquilo que é o nosso código genético, faz mais sentido ter uma coisa que se produz do que ter dinheiro no bolso para estourar.”
"Por causa dos afectos, da tradição, das histórias de família que se podem contar à volta da capacidade de transformar, de produzir algo, da identidade de uma marca, os irmãos João e Margarida Bastos, proprietários da Arcádia, antiga confeitaria e hoje fábrica de chocolates do Porto, fundada em 1933, decidiram avançar com o projecto quando da morte do pai, em 2001. São a terceira geração, e desafiam, como todas as empresas entrevistadas pela Revista 2, as estatísticas sobre as dificuldades de transição geracional dos negócios familiares. Um estudo de 2010 da consultora Price Waterhouse Coopers, feito em 35 países, revelou que apenas 36 por cento das empresas sobrevivem à passagem para a segunda geração e 19 por cento para a terceira. As percentagens de sucesso tornam-se irrisórias à medida que as gerações avançam.

Tanto a Viarco como a Arcádia são marcas que fazem parte do imaginário dos portugueses. O escritor António Lobo Antunes refere-se em Memória de Elefante ao odor “persistente dos lápis Viarco”. José Vieira acrescenta, com o icónico lápis Copianço (o da tabuada) na mão: “As pessoas chegam aqui à fábrica e têm memórias olfactivas: cheira a lápis, cheira a história, cheira a escola primária.” O mesmo se passa com os chocolates, dizem João e Margarida Bastos, para quem a Arcádia continua a ser um nome “emblemático na cidade do Porto”, lojinha e fábrica escondidas no fundo da Rua do Almada, nos sopé dos Clérigos. “Os chocolates Arcádia faziam muito parte do imaginário das pessoas de fora do Porto. Dizia-se que eram os chocolates que ‘o meu pai me trazia’ ou que ‘eu levava à minha namorada’. Havia até pessoas que deviam pensar que o Porto era uma espécie de fábrica de chocolates”, conta João. Uma vez mais, Lobo Antunes corrobora numa crónica: “O dr. Corino de Andrade morava no Porto, cidade que eu não conhecia e de onde os meus pais nos traziam chocolates: durante anos e anos, o Porto foi para mim os chocolates da Arcádia. Volta e meia, desse paraíso de cacau, chegava a Lisboa o dr. Corino de Andrade.” Esse imaginário também é preenchido pelas épocas da Páscoa e do Natal (representam 55 por cento da facturação anual da Arcádia), pelos tradicionais bombons (são mais de 70 tipos) e pelas amêndoas: no Natal, a fábrica de chocolates artesanais chega a produzir de 500 a 600 quilos de chocolate por dia. E só na Páscoa de 2013, a Arcádia vendeu cerca de 64 toneladas de amêndoas.

João e Margarida tiveram, antes, carreiras próprias em sectores diferentes do negócio dos chocolates: João trabalhou na Sonae (proprietária do PÚBLICO) durante 24 anos e Margarida, farmacêutica, trabalhava em análises clínicas. Em 2001, dedicaram-se a este projecto e, desde então, a Arcádia não parou de crescer. Os irmãos refundaram, reinventaram a marca, cobrindo primeiro toda a cidade do Porto (em shoppings com pequenos quiosques, depois com lojas maiores), expandindo-se depois para Lisboa e por todo o país. A capital era uma ambição: “Era essencial chegar a Lisboa. Lisboa é Lisboa e é um mercado com outra dimensão e outro poder de compra. Desde 1933 nunca tínhamos saído do Porto, mas tínhamos a noção de que a marca era conhecida na capital.”
Entretanto, veio a crise. Mas se os anos de 2008 a 2014 foram difíceis para qualquer sector, na têxtil a crise já havia começado. Para a Lameirinho, o primeiro impacto foi a reorganização do poder de compra no mundo com o 11 de Setembro de 2001. Depois, sofreram as consequências da liberalização dos mercados pela Organização Mundial do Comércio (OMC), com a concorrência de produtos de países como a China, Paquistão, Bangladesh, que arrasou a indústria têxtil e de calçado em Portugal.
“Nos últimos 20 anos, passámos, sem excepção, situações muito imprevisíveis, incontroláveis, e foi dramático para todos. O que nos permitiu sobreviver tem que ver com a grande disciplina, uma grande contenção de custos e uma consciência de que o ramo é muito volátil e sensível a crises”, explica Paulo Coelho Lima. Admite que o crescimento do sector nos anos 90 acabou por ser contraproducente: “Os anos 90 foram um boom de um crescimento brutal, com facilidades de crédito incríveis, participações comunitárias significativas. Cresceu-se imenso, todo o Portugal cresceu.”
A abertura dos mercados pela OMC foi fatal para o sector. Mas não só, diz o empresário: “Durante muitos anos, a têxtil e as indústrias tradicionais eram a vergonha da indústria em Portugal.” Havia um certo preconceito sobre o sector. Dizia-se que “o trabalhador têxtil e os empresários não tinham formação, os [proprietários] compravam carros topos de gama e estavam preocupados com novo-riquismo e pouco mais”. A Lameirinho, conta, contrariou essa “tradição” da têxtil em Portugal, porque “os valores que os nossos pais nos têm vindo a transmitir foram sempre os de continuidade do negócio”.
Por causa da crise, a Arcádia repensou os seus investimentos: talvez abrir uma grande loja em Lisboa não fosse realista. “Os bancos deixaram de financiar a médio e longo prazo, e se já era difícil manter o que tínhamos, que fará crescer, com novos financiamentos, novas lojas”, diz João Bastos. Tinham duas hipóteses: esperavam que a crise passasse, “e ficávamos aqui quietinhos” — “se o tivéssemos feito, a crise teria dado cabo de nós porque ainda não saímos dela” — ou investiam. “Pensámos: por que não fazemos lojas pequeninas, só para vender chocolates e amêndoas, inspirada na loja que temos aqui? Dará para ver se, de facto, Lisboa pode ser um mercado.” Em 2009, abriam uma espécie de “boutique de bombons”, na Avenida de Roma, em Lisboa, e foi um sucesso.

"Na Viarco, os investimentos também chegaram nos anos duros. “Ou a empresa encerrava ou chegávamo-nos à frente”, conta José Vieira. José e Ana compraram a Viarco no “pior momento de todos: no meio de uma crise mundial catastrófica, no mês em que a troika entrou em Portugal [Maio de 2011], numa altura em que já ninguém queria os edifícios e as coisas que seriam uma grande garantia, de um momento para o outro, deixaram de valer”. Nesse ano “chegámos a perder mais de 250 mil euros em linhas de crédito” e quase se arruinavam porque não tinham “dinheiro para comprar matéria-prima para trabalhar”.
Ainda hoje o acesso ao crédito é a grande limitação das empresas. A Viarco, por exemplo, é uma empresa com 19 trabalhadores que todos os anos tem vindo a crescer e a arranjar clientes no estrangeiro: “Mesmo assim, ainda penamos como cães para conseguirmos arranjar ferramentas financeiras que nos permitam fazer o nosso produto.” O produto é “aquela coisa insignificante” e que “não vale nada”: o lápis. Mas a Viarco soube transformar o que era velho, obsoleto e ultrapassado em mais-valia: “Temos uma fábrica antiga, disfuncional, com máquinas velhas, num marcado megacompetitivo dominado por multinacionais, como a Caran d’Ache, a Staedtler, ou a Faber-Castell, cujo produto final é mais barato do que o preço que nós pagamos por madeira. E pensámos: temos a única fábrica de lápis do país; máquinas tão antigas que são arqueologia industrial pura; se há aqui um processo produtivo, pedagógico, aquilo que podemos é arranjar uma solução de transformar isto num foco de turismo.” Com o apoio da Câmara Municipal de São João da Madeira, a Viarco pertence agora ao projecto de turismo industrial junto a outras empresas emblemáticas do concelho: recebem visitas regulares, tornaram-se um museu industrial.
Se à fábrica, que “devia ter sido arrasada”, e às máquinas antigas “de suposta baixa produtividade e que afinal são altamente versáteis”, se juntarem residências de artistas em zonas do complexo fabril e o “conhecimento que existe aqui há um século”, de trabalhadores com décadas de experiência — “como se faz um lápis ou uma mina? Quais as matérias-primas e os comportamentos dessas matérias?”, diz Vieira — “se cruzarmos esses conhecimentos com tudo aquilo que é conhecimento artístico e turismo industrial”, a Viarco percebeu que podia criar produtos que ainda não existiam, fazer diferente das multinacionais, e, assim, acrescentar valor.
“Isto é um delírio”, diz José Vieira. “Quando falamos com doutores que querem números e vivem números e vomitam números, isto [a Viarco] faz-lhes muita confusão: do ponto de vista de negócio faz sentido, do ponto de vista das regras do mercado não faz sentido nenhum. Isto ‘tem de’ ser altamente produtivo: mas se isto for altamente produtivo, deixa de ser altamente versátil. Se pensar apenas numa lógica da rentabilidade, há muitos projectos que vão morrer à nascença. A pergunta é sempre: quantos vão vender? Eles estão habituados a fazer contas: isto vai custar tanto a produzir. Nós fazemos as contas ao contrário: desenvolvemos uma ideia, produzimos um protótipo, pegamos no produto e chamamos os artistas para o experimentar. Acham que vale a pena? Quando pagavam por isto? Depois do IVA, do preço do retalhista, do distribuidor que vai querer 40 ou 50%, quanto fica para a empresa? E as margens passam de ser aquela coisa manhosa, pequenita, de corta-unhas, para coisas muito mais interessantes: porque é aí que entra o lápis como ferramenta, entra o design, entra a relação do artista com o produto e entram as questões emotivas. São coisas que não podemos contabilizar — quanto custa produzir isto com esta margem de lucro — porque são coisas que não podemos meter numa folha de Excel.” (...)
Segurar o negócio nas mãos da família é, talvez, a grande mensagem para as gerações futuras. Ainda que todos tivessem gosto na perpetuação do negócio na família, ninguém é avesso a uma gestão independente e profissionalizada. José Vieira tem uma filha de sete anos: “Ela adora vir para aqui e diz que quando for grande quer ser massagista e trabalhar na Viarco. Não faço ideia do que ela quer dizer com isso.” Porque este é um “trabalho duro”, lembra. É preciso “uma capacidade de resistência e sofrimento muito grande para que as coisas se mantenham e aconteçam”. O importante é que “empresa continue independentemente de quem cá estiver”. Os valores importantes “são os que são comuns às pessoas boas”. Vieira espera que, venha quem vier, “consiga levar isto mais longe, pagar melhor aos funcionários, consiga desenvolver mais projectos e crescer: isso é que é desenvolvimento, não é encher os bolsos de dinheiro”.

Texto de Raquel Ribeiro e fotografias de Nelson Garrido para a revista 2 do Público. Na íntegra, aqui.

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