quarta-feira, 6 de maio de 2015

"Não é lápis, é pincel, é o que se quiser"


"Não tem forma definida, parece plasticina de grafite, permite múltiplas texturas, obras em grande escala. Serve para desenhar e não só. É para profissionais e, no futuro, será para crianças curiosas em juntar cores. A nova criação da Viarco suja as mãos e não tem manual de instruções.

Estranha-se quando a pasta é colocada em cima da mesa sem rótulo, sem descrição de ingredientes, sem nome, sem livro de instruções. A massa está dentro de um saco plástico e parece um monte negro de plasticina. Toca-se, mexe-se, e é agradável ao toque, suja-se imediatamente as mãos — nada que não saia com água e sabão. Depois molda-se, entranha-se e trabalha-se sem limites, ao gosto da arte. Fazem-se bolas, quadrados, rectângulos, simula-se um pincel, tenta-se moldar um lápis e ataca-se a folha em branco para perceber as potencialidades do mais recente produto criado pela Viarco, a única fábrica que produz lápis em Portugal, instalada em São João da Madeira.

A artista plástica Alexandra de Pinho mete as mãos nessa espécie de pasta de grafite. Molda-a, experimenta-a no papel. A primeira reacção ao toque lembra-lhe a borracha que é usada para apagar grafite, mas este material faz precisamente o contrário. Cria, não apaga. “A sobreposição é conquistada gradualmente, com o carvão não se consegue isso”, comenta.
É mole, é grafite, parece argila, não tem forma e, por isso, pode ser o que o artista quiser. Pede papel com gramagem de mais de 500 gramas quando é misturada com água, ficando ainda mais escura na folha, quando se movimenta em meio líquido. Chama-se Art Graf N.º1 e estará no mercado dentro de um mês. Primeiro para profissionais das artes, depois, num tempo ainda a definir, surgirá com cores primárias especificamente para crianças que com bolinhas, ou outras formas, poderão juntar e criar tons.

Este material surge de vários comentários, conversas, opiniões que se foram registando, questionando, digerindo, maturando, testando. Há alguns anos, o pintor José Emídio bateu à porta da Viarco à procura de uma ferramenta que lhe permitisse fazer uma obra de grande escala e com traços grossos. O que encontrou não servia para o que pretendia. Depois disso, em conversas com artistas, José Miguel Araújo, dono da Viarco, percebeu que havia quem se questionasse por que razão não havia no mercado material de desenho e pintura para pessoas com problemas de motricidade fina. A ideia de uma plasticina que agarrasse um lápis ou um pincel foi mencionada em mais conversas com outros artistas. No ano passado, à última hora, José Miguel teve de substituir um artista plástico num workshop para miúdos no âmbito do Imaginarius – Festival Internacional de Teatro de Rua, de Santa Maria da Feira. Decidiu improvisar, levou um pedaço de grafite e colocou-o no meio da mesa. Foi a loucura. As crianças agarraram-se ao grafite, molharam-no em água, e começaram a desenhar.

A ilustradora Lara Luís começa por testar a massa de grafite como se fossem carimbos. As mãos estão sujas, mas isso não importa. E quem percebe da arte não borrata desenhos. Pressiona bolas e outras formas no papel. “As crianças vão gostar disso”, diz. A Viarco tem essa noção. Mas para criar as cores básicas nessa pasta mole é preciso ainda estudar e testar a concentração e quantidade de pigmentos.

Depois de pequenas bolas, de experimentar o que o produto permite em termos de texturas, de brincar com a massa, a ilustradora usa um pincel para desenhar uma das figuras das suas ilustrações — uma miúda de cabelos compridos e pretos. Não dá para moldar a pasta como se fosse um lápis para o traço mais fino? “É mole para bico de lápis”, responde. Para uma maior definição e detalhe serão precisas outras ferramentas. Lara Luís sai da sua zona de conforto em termos de materiais e não se sente perdida. Pelo contrário. “Dá para fazer muitas texturas. Este material consegue ser imensa coisa ao mesmo tempo”, conta. Não tarda muito e Lara Luís sente-se em casa. Percebe que aquela massa tem capacidades para fazer o que faz habitualmente com o pincel. “É incrível para texturas”, garante.

Percebe-se que a noção de escala é importante e adapta-se essa pasta a um desenho numa folha pequena. Alexandra de Pinho confessa que nunca usou um material tão maleável para desenhar. E não é nada habitual trabalhar com um instrumento que não existe, que tem de construir no momento. “Não há contacto directo com a base de trabalho, a não ser que se utilize os pincéis”, refere. Eles acabam por entrar na experiência para obter traços mais finos.

A Viarco não fecha os ouvidos a qualquer observação, crítica, sugestão e se José Miguel escuta duas vezes uma observação relacionada com alguma coisa relativa à sua área de negócio, então é porque mais gente anda a pensar no mesmo. Foi o que aconteceu neste novo produto. Não se limita a produzir lápis, gosta de inovar. “Gostamos de fazer diferente. Temos uma versatilidade e uma flexibilidade que muitos não têm. Muitos têm a máquina tão afinada que não produzem nada de diferente”, refere. Quanto à mais recente criação, José Miguel tem a sua opinião. “Isto é desenho e não é desenho, permite tudo.”

Alexandra de Pinho continua a testar o material, esboça o desenho de uma carta antiga, o tema que anda a explorar nas suas obras. “Quando surge um material novo como este, não há técnica, vale experimentar tudo”, afirma a artista que está habituada a colar e coser tecidos nas suas telas. O que tem nas mãos é um desafio. “Há muita liberdade de registo, não há restrições, não há limites e tem uma grande abrangência de texturas. Tem muito potencial e vai ser uma lufada de ar fresco”, avisa.
Este novo produto já anda em escolas secundárias e em universidades pela mão do artista plástico Ricardo Pistola, que no âmbito da sua tese de doutoramento em Educação Artística, apoiado pela Fundação para a Ciência e para a Tecnologia, está a testá-lo junto de alunos e também de artistas a quem pede que respondam a uma grelha de avaliação que criou para perceber as potencialidades do produto — os novos materiais da Viarco são uma parte do seu estudo académico.
O material é colocado à disposição sem indicações de utilização, sem manual de instruções. O objectivo é ver reacções e utilizações. Regra geral, brinca-se primeiro com a pasta, depois fricciona-se no papel para ver o que acontece, percebem-se texturas, os traços que podem surgir. Molda-se o que se quer, como se quer, para criar o que se quer. Quase todos desenham, mas nem sempre é assim. Ricardo Pistola viu alunos de escultura a criarem objectos escultóricos com essa pasta mole, sem qualquer risco na folha ou desenho para memória futura. “Uma vantagem deste material é de não ter referente em termos de instrumento de desenho. É versátil e não serve só para desenhar”, observa o artista.

Ricardo Pistola sente o corpo mais envolvido no desenho quando o artista tem de criar o seu próprio instrumento de trabalho. “O corpo envolve-se porque tem de reconstruir e redefinir o instrumento com que quer desenhar. É um híbrido que permite construir uma ferramenta. Molda-se, deixa-se secar e usa-se”, resume. Além das possibilidades que se conquistam no desenho em grande escala, há também a questão do tempo. Com uma ferramenta que pode ter a forma que se quer a cada segundo, a cada traço, a cada textura, Pistola considera que a percepção do tempo muda. Menos tempo para um trabalho de grande escala, talvez mais para desenhos de pormenor até a mão se habituar. “O tempo do desenho passa a ser diferente”, comenta.

O Art Graf n.º 1 chega ao mercado dentro de um mês em dois formatos. Já foi mostrado aos distribuidores internacionais da empresa e divulgado numa feira nos Estados Unidos no mês passado. José Miguel Araújo garante que o feedback tem sido positivo. Há já três países interessados em comercializar o material: Estados Unidos, Coreia e Austrália.

Neste campo, a fábrica de lápis tem uma filosofia muito própria. “A arte é um nicho de mercado. Nesse nicho há nichinhos e dentro desses nichinhos há um enorme mercado”, diz José Miguel Araújo. E, como em tudo, é preciso perceber como os conceitos se comportam no mundo real. “Primeiro surge a ideia, depois é preciso saber se conseguimos fazer. Se conseguimos fazer, temos de ver se funciona. Se funciona, temos de ver se tem impacto. E depois vamos às contas”, remata o dono da Viarco.”

Texto: Sara Dias Oliveira. Fotografia: Nelson Garrido.
Jornal Público.

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