terça-feira, 30 de junho de 2015

"Sou uma jornalista que se meteu a fazer de merceeira"

"Parece uma miúda. É quase impossível imaginar que já passou dos 40. Ri, chora, sobe de tom, perde-se nos silêncios. Perde-se dentro dela. Bem diferente dos irmãos, Miguel e Paulo, que ambos se dedicaram à política, Catarina Portas sonhou ser chapeleira, mas tornou-se antes uma espécie de Alice no país das maravilhas das marcas portuguesas. Depois de anos dedicada ao jornalismo, uma investigação para um livro, há dez anos, levou-a a criar o projecto A Vida Portuguesa. De jornalista, como diz, passou a merceeira. Mas sem arrependimentos. Tirando, talvez, a falta de tempo. Um valor precioso que tem vindo a descobrir.

Há uns dias fez um desabafo no Facebook sobre como Lisboa estava a ficar uma cidade caça-turistas.
 
O que escrevi foi que algumas zonas da cidade se estão a transformar em zonas caça-turistas, e isso preocupa-me. Estava a falar exactamente da Rua Augusta. Acho que, neste momento, devíamos parar todos para pensar, a começar pela CML, mas também por muitos agentes da cidade. Também acho que o turismo é uma oportunidade fantástica e é bom que os outros conheçam a nossa cidade. Agora, temos de perceber que consequências é que isso tem. Não podemos estar de braços abertos a tudo. Tem de haver estratégia. Sobretudo, o que me preocupa realmente é matar a galinha dos ovos de ouro. Ou seja, os turistas vêm a Lisboa porque gostam de uma cidade que não é ainda uma cidade perfeita, que é uma cidade com charme, antiga e que ainda tem algumas coisas de manufactura que não existem noutras cidades da Europa. Quando um hotel aparece a querer despejar as lojas que lá estão há cem anos, o que esse hotel está a fazer é matar a galinha dos ovos de ouro, como é o caso do Hotel Bordallo Pinheiro que, para existir, vai despejar uma loja com 99 anos, a Cerâmica de Sant’Ana.
Como se controla isso?
A CML licenciou, ou não, este hotel? A câmara teve cuidado em alguns casos mais emblemáticos, como a Tous e a Ginjinha, mas deveria estar muitíssimo mais atenta. E tem de agir, apesar de não ter muitos instrumentos, porque normalmente isto são coisas que se passam entre particulares. Há um mês e pouco, a câmara formou um órgão consultivo para o problema das lojas com história. É um programa que se destina a tentar que essas lojas não desapareçam, sobretudo num momento em que a pressão imobiliária é tão forte. A câmara tem, obviamente, forma de impedir a destruição da Casa da Sorte, na Rua Garrett.
A saída de António Costa veio desnortear a posição da CML?

Não sei… Mas, até agora, não ouvi nenhuma grande declaração sobre os perigos do turismo da parte do presidente da câmara, Fernando Medina. A única coisa que ouvi foi: venham mais. E acho que, neste momento, há alguma pedagogia a fazer. Até porque há muita gente a começar a ficar espantosamente zangada com isto.
Cada vez mais vozes protestam contra o excesso de turismo em Lisboa.
As pessoas sentem-se incomodadas com a pressão turística e, para mim, isto é grave. Porque tenho a certeza absoluta de que, há quatro anos, o turismo salvou esta cidade da crise. Nós recebemos bem os turistas. Se nos vamos zangar com o turismo, não é bom para ninguém. Temos de conjugar de forma equilibrada as necessidades das várias partes.
Essa análise pode ser vista de outro lado porque, ao mesmo tempo, de certeza que está a facturar mais do que nunca.

Claro que estou! E por isso é que me preocupo. Tenho uma loja onde mais de 50% do que vendo é dinheiro estrangeiro. Sou a primeira interessada no turismo em Lisboa, mas não quero olhar para hoje e amanhã sem olhar para o ano que vem. Acho que a isso se chama falta de inteligência.
Quando fez a loja já tinha esperança neste crescimento do turismo?

Há oito anos, quando fiz a loja do Chiado, fiz para os portugueses. Mas sempre quis que o que vendia pudesse ser entendido por estrangeiros. Por isso é que sempre tive as etiquetas também em inglês. Hoje em dia, a minha loja está na maior parte dos guias turísticos, tenho turistas de todos os países, todas as idades e todos os extractos económicos. E hoje em dia há turistas interessantíssimos na nossa cidade. Mas também há um turismo menos interessante.
Qual?

Tenho imensas dúvidas sobre o turismo de cruzeiros. Acho que deixa pouquíssimo dinheiro na cidade.
Mas foi um dos maiores investimentos da cidade…
Foi, mas é um turismo estranho. Aqui há uns tempos estive um dia inteiro no porto a ver um paquete. Muita gente nem sai do barco, outros saem do barco e entram directamente numas camionetas para irem a Sintra, outros voltam ao final do dia com sacos da Primark e da H&M. Vale a pena gastarmos milhões a investirmos neste turismo?
Foi uma das oradoras na conferência da “Monocle” onde se discutiu qualidade de vida. É irónico que a revista tenha escolhido a nossa capital para palco desta discussão, numa altura em que os lisboetas cada vez se queixam mais?
 
Acho que ainda não temos falta de qualidade de vida, mas estamos num momento crucial para decidirmos o que queremos no futuro. Sobretudo se não quisermos que uma grande parte da cidade que conhecemos desapareça. Qualquer dia temos uma cidade em que estão os hotéis a olharem uns para os outros e em que as pessoas vêm a Lisboa ver turistas. É evidente que não estamos no estado de Barcelona, que é a terceira cidade com o maior número de turistas da Europa e que agora quer pensar no assunto e pôr um travão. A mim, o que me preocupa sobretudo são as lojas antigas, que representam cultura, saber fazer e uma tradição de vida desta cidade. E neste momento são as mais fáceis de fazer desaparecer. Há uma certa falta de originalidade nos negócios portugueses que me incomoda. Aparece uma hamburgueria e aparecem mais 20. É sempre mais do mesmo.
Mas ainda temos qualidade de vida?
Temos imensa! Vamos estar na lista das 25 cidades com qualidade de vida da “Monocle” e acho que vamos subir em relação ao ano passado. Nós, portugueses, temos uma certa tendência para nos acharmos vítimas do mundo mas, de facto, numa cidade em que em 25 minutos estamos na praia, que ainda tem vida de bairro, onde se pode andar de bicicleta, que tem mercados… Claro que há coisas que podiam ser melhores, como os transportes públicos e a reabilitação. Mas cada vez que oiço dizer que somos um país de terceiro mundo apetece-me pegar nessa pessoa e levá-la a alguns países que conheço.
Esse complexo de inferioridade tem a ver com a má relação que ainda temos com o passado?

Está melhor. Quando, há dez anos, comecei o projecto que veio a dar n’A Vida Portuguesa, uma coisa que me fazia muita impressão era que não se discutia o século XX e nem sequer se ensinava na escola. Falava-se o menos possível sobre o assunto. Muita coisa mudou e tenho para mim que o momento-charneira foi quando o Salazar ganhou aquele concurso televisivo do maior português de sempre. Isso teve uma dimensão simbólica e, na altura, discutiu-se muito. Ao mesmo tempo, começou a ter voz uma outra geração.
O arranque d’A Vida Portuguesa teve a ver com essas questões da nossa memória nacional?
 
Sim, queria fazer um livro sobre a vida quotidiana em Portugal no século XX. Andava a recolher material e percebi que muitos produtos estavam a desaparecer. E exactamente por viajar muito e por ver marcas antigas em todos os países, pensei: porque não estimamos nós as nossas?
Quando começou a estabelecer os primeiros contactos, acharam que estava maluca?
Não. Logo nas primeiras fábricas onde fui, fui muito bem recebida. E houve uma pessoa que tive a noção, depois de ter explicado o projecto, que ele tinha entendido, de facto, o que eu queria fazer e que me disse para ir em frente que estaria comigo para o que desse e viesse. Essa pessoa foi o José Fernandes, que dirige a Ach Brito. O ele ter acreditado deu-me uma segurança que eu não tinha.
Na altura, o projecto já passava pela ideia de uma loja?
 
Passava por muitas coisas! Como não tinha dinheiro, comecei por fazer revenda para outras lojas. Depois, para testar o conceito de loja, fiz dois bazares de Natal e achei que tinha pernas para andar. Consegui uma renda barata num sítio interessante, uma loja antiga. Às vezes temos de ser muito negociadores: consegui essa loja porque aceitei um contrato de arrendamento trimestral. E tive esse contrato durante muitos anos.
Lembra-se do dia em que abre a loja e passa a ter contacto directo com o público?

Sim, mas a primeira vez que houve esse contacto foi ainda numa fase inicial, quando fizemos o primeiro bazar de Natal, na loja da Atalaia, do Manuel Reis. Lembro-me que havia bicha para pagar. Fazíamos as embalagens com um cordel rosa-choque que tinha a peculiaridade de tingir as mãos. E temos fotografias, no final do dia, com as mãos totalmente rosa-choque. Percebi que tocávamos pessoas completamente diferentes umas das outras. Tanto vinha a velhinha do Bairro Alto que já não conseguia comprar o creme Benamor porque as drogarias tinham fechado como aparecia uma pessoa de 20 e poucos anos. A diversidade era de tal ordem que percebi rapidamente que tinha tocado num nervo qualquer.
Um nervo carregado de emoções. Desde o início que começaram a partilhar histórias consigo?
Sim. Aliás, houve uma altura em que queria ter um sofá e uma câmara na loja. As pessoas chegam e desatam a contar histórias. Havia muita gente que achava que aquelas marcas tinham desaparecido. A Vida Portuguesa continua a ser uma loja onde as pessoas contam histórias umas às outras, nomeadamente quando vêm várias gerações.
Só por isso estes dez anos já valem a pena?

Valem a pena por tantas coisas! Vale a pena termos 30 pessoas a trabalharem n’A Vida Portuguesa, vale a pena termos dado às pessoas vontade de voltarem a gostar das suas próprias coisas. O problema de muitos destes produtos é que estavam associados a um tempo do qual muitos de nós sentimos vergonha. Era um país atrasado. As pessoas diziam que eu tinha uma loja cheia de produtos fascistas. Tinha de explicar que as marcas que vendemos existiam antes de Salazar chegar ao poder e continuaram a existir depois de ele cair da cadeira.
Este projecto não corre o risco de se esgotar? Qual o futuro?
Abrimos uma primeira loja no Chiado, que correu muitíssimo bem; a seguir abrimos no Porto e depois no Intendente, uma loja com 500m2. Agora já temos escala para fazermos o que ambicionávamos há anos e que é um gabinete de design. Esse gabinete serve para fazer produtos da marca A Vida Portuguesa, para colaborar com as fábricas, editar livros e fazer design de interiores. Estava há dois anos a convencer as pessoas com quem ambicionava fazer este gabinete a mudarem de Berlim para Lisboa, e consegui. São os The Home Project. Ele é português, ela é alemã, e fizeram um projecto que acho exemplar, o projecto Tasa, sobre artesanato algarvio.
E continua a receber muitos pedidos de franchising?
 
Sim, alguns muito comoventes. Mas tenho dúvidas. Até que ponto é que quero ter 60 lojas, todas iguais umas às outras? Ou quero ter apenas meia dúzia de lojas, mas em que cada uma é uma experiência especial? São escolhas que temos de fazer na vida. Não posso esquecer que sou uma jornalista que se meteu a fazer de merceeira. Preferi crescer devagarinho, mas com alguma segurança.
Hoje em dia é uma merceeira que já não se lembra do que é ser jornalista, que foi a profissão que deixou para trás?
 
Nem jornalista nem documentarista nem chapeleira! Estive agora a arrumar uns armários e encontrei armários e armários cheios de formas de chapéus. Fiquei a olhar para tudo aquilo com tanta nostalgia! A vida é feita de escolhas.
Mas pelo menos o lado da jornalista / documentarista tem um projecto antigo: um livro sobre o Frágil e sobre Manuel Reis.
 
Ainda não nos coordenámos para isso. O material do Frágil é extremamente interessante, não só as fotografias, mas tudo o que está à volta. O que o Manuel queria fazer era disponibilizar esse material também às pessoas que estão nele. E isso ele já começou a fazer através de um site.
Sempre disse que o Manuel Reis era das pessoas mais importantes da sua vida. Porquê?
Porque o Manuel não faz concessões. O Manuel faz aquilo em que acredita e são coisas com imensa qualidade. Tenho muita admiração por ele. O Manuel está do lado certo da força e tudo o que fez em Lisboa foi visionário e bem feito. É uma pessoa que me ajudou imenso ao longo do meu caminho. Conheci-o quando ainda era criança. Ao longo da vida, fomo-nos aproximando. O Manuel foi uma pessoa que me aconselhou muito no início deste projecto. E ainda agora. Sempre de uma forma absolutamente discreta, mas importantíssima. Não tenho dúvidas de que o Manuel foi uma pessoa imprescindível para a Lisboa de que eu gosto.
Era muito jovem quando entrou pela primeira vez no Frágil. As novas gerações, quando se fala do Frágil, não têm noção de que se tratava de muito mais que uma discoteca?
Estive na inauguração do Frágil, bebi um sumo de laranja e às 11 já estava em casa. Só comecei a ir uns anos depois. Tive essa sorte porque o meu padrasto era cliente do Manuel e o Alfredo, que era o elemento da segurança que estava à porta do Frágil, ia fazer umas entregas lá a casa. Talvez por isso, achava que era menos perigoso estar dentro do Frágil do que andar no Bairro Alto às tantas da manhã, com 16 anos, e deixava-me entrar. Nessa altura, o Frágil era o único sítio onde conseguia entrar! A minha vida fazia-se muito ali. Cada vez que chegava do estrangeiro, o primeiro sítio onde ia era ao Frágil, para saber o que se tinha passado. Eu era mais nova, dava-me com pessoas mais velhas e andávamos todos ali a querer ser qualquer coisa.
Nasceu em Lisboa e diz sempre que as suas primeiras recordações giram em torno de uma casa, uma espécie de porto seguro de toda a família Portas.

Sim, têm a ver com uma casa onde havia muita gente e um ambiente de felicidade. Não era um ambiente de paz, mas era um ambiente de vida e de alegria. Havia muita gente lá em casa e houve alturas nada fáceis. Lembro-me de a PIDE ir lá buscar livros e de o namorado da minha tia ser preso.
Portanto teve sempre noção do que se passava no país?
 
Claro! O meu irmão já estava no PC, o meu pai e a minha mãe tinham actividade política e a minha tia, que vivia connosco, também. Lá em casa faziam-se Luísas, que eram bonecas de trapos com ar de Louise Brooks que eram vendidas para arranjar dinheiro para os presos políticos. E lembro-me perfeitamente das visitas à cadeia de Peniche para vermos o namorado da minha tia.
Com que estado de espírito saía dessas visitas? 
Tinha pouco mais de cinco anos…
Lembro-me que uma vez me deixaram passar para o lado de lá do parlatório e andei ao colo de vários presos, e eles tinham uma felicidade imensa por terem uma criança nos braços, porque muitos tinham filhos ou sobrinhos. Curiosamente, não me lembro do 25 de Abril. Mas lembro-me do 26. Fomos para Peniche porque o namorado da minha tia ia sair nessa noite. Tenho uma ideia nítida de que havia um corredor enorme e que os presos foram saindo enquanto gritávamos “Os pides lá para dentro, os presos cá para fora!”. O Zé saiu, pôs-me às cavalitas e a ideia que tenho é a da felicidade absoluta. Foi a primeira directa da minha vida [olhos rasos de lágrimas].
Os tempos que se seguiram foram vividos em festa?
A minha vida familiar complicou-se muito logo a seguir. O meu pai [arquitecto Nuno Portas] foi para o governo como secretário de Estado da Habitação, foi quando fez o projecto SAAL (Serviço Ambulatório de Apoio Local). A minha mãe decidiu ir fazer urbanismo para Inglaterra. E acabaram por se separar. Fui para Inglaterra com a minha mãe. Depois a minha mãe foi trabalhar para a UNESCO em Paris e eu voltei a ir com ela. Ou seja, a partir do 25 de Abril, o núcleo familiar espalhou-se. Mas a casa do meu pai, onde ele estava sempre que vinha a Lisboa, a tal casa da Lapa, que hoje é minha, existiu sempre. Foi para aí que fui viver quando saí de casa, aos 16 anos.
O que a fez sair de casa aos 16 anos?

Saí de casa porque estava em período de rebeldia adolescente e estaria certamente bastante insuportável de aturar, tanto pelo meu padrasto como pela minha mãe. Chegámos a umas conversações familiares em que se disse: “E que tal se ela fosse experimentar viver com o Miguel?” E lá fui eu para a casa da Lapa, onde vivia o meu irmão. O Miguel explicou-me que, se ia viver lá para casa, tinha de pagar a minha parte das contas da casa. Passei a receber eu a pensão que o meu pai dava à minha mãe. E a geri-la, o que nem sempre foi fácil. A minha educação sempre foi a da responsabilização. Nunca me disseram que não podia fazer alguma coisa. O que me diziam era “achas mesmo que é isso que deves fazer? Tens a certeza? Porquê? OK, se achas que deves fazer, faz”. Se não corresse bem, claro que eles estavam lá para mim.
Mas foi correndo bem?

Sim, mas foi também por isso que nunca cheguei a ser chapeleira, como sonhei. Era aprendiza e as mestras não tinham dinheiro para me pagar. E eu precisava de ganhar a vida. Tive de fazer uma escolha e escolhi o emprego que me pagava, o jornalismo.
Se não tivesse sido o dinheiro e essa sede de independência, teria sido chapeleira e a sua vida provavelmente seria diferente…
Sempre me imaginei a fazer alguma coisa com as mãos. O que era estranho, porque no Liceu Francês era muito boa aluna, sobretudo em letras. O natural teria sido ir para a universidade, mas houve alguma arrogância juvenil da minha parte. Não me arrependo. Se tivesse ido para a universidade, a minha cabeça seria outra, teria um olhar sobre o mundo mais formatado, menos livre, e não teria feito as coisas que fiz.
Livre é a palavra que melhor a define?

Se calhar. Durante muitos anos foi livros, mas talvez de livros tenha passado para livre. [risos] Desde que comecei a ler, aos cinco anos, até começar a namorar, aos 15, devo ter lido um livro por dia. Era compulsiva. Um dia comecei a olhar para o mundo e a achar que era tão diferente dos livros... Mas acho que ler ajuda a ter uma cabeça livre.
Os seus primeiros passos no jornalismo foram algo acidentais?

No início d’“O Independente” estava lá muito, dava umas ideias, e como não havia ninguém para as concretizar diziam-me para fazer eu. Sempre tive uma enorme facilidade de escrita e, aliás, nessa altura não queria escrever porque achava que era demasiado fácil. Claro que, quando comecei a escrever por obrigação, não dormia, vomitava, sofria tanto com a insegurança...
Porque decide sair d’“O Independente”?

Quando comecei a achar que o meu caminho podia mesmo ser o jornalismo, tratei de sair dali rapidamente porque tinha pessoas demasiado próximas n’“O Independente”, como o meu irmão Paulo e o meu namorado, Jorge Colombo, que era o director gráfico. Pensei que estava ali demasiado protegida. Nunca ia perceber se prestava ou não. Concorri ao Correio da Manhã Rádio, onde estive algum tempo. Depois fui para a “Marie Claire”, onde estive dois anos e meio e ganhei dois prémios que me permitiram ser freelancer. Nessa altura ainda passei pela RTP, no “Telejornal”, mas comecei a sentir vontade de fazer coisas com mais fôlego. Fiz várias outras coisas em televisão, entre as quais o “Sofá Vermelho”, na SIC. Mas após fazer um livro sobre Goa comecei a sentir-me muito interessada pelo formato do documentário. Fui para Paris estudar, e enquanto estava a pensar em filmes que queria fazer comecei a pensar também no tal livro sobre a vida quotidiana em Portugal, o livro que deu origem à Vida Portuguesa. Acho que a minha atitude continua a ser de jornalista, de aprender, estudar e comunicar isso às pessoas.
Disse que sentiu necessidade de sair d’“O Independente” porque se sentia demasiado protegida. Sentiu isso a vida toda? Era “a irmã de”?
 
Não. Até aos 20 e tal não senti mesmo. Estávamos todos a fazer pela vida e nenhum de nós era muito conhecido, como veio a acontecer mais tarde. Sempre tentei não me condicionar por isso. E havia uma coisa que dava imenso jeito: como tinha um irmão de cada lado, as pessoas nunca sabiam muito bem onde me colocar.
Sente que existe uma grande curiosidade acerca das diferenças entre os três?

Sim, mas essas coisas explicam-se também pela educação. O Miguel veio viver com o meu pai e a minha mãe quando tinha 11 anos, altura em que eu nasci, e teve uma educação diferente do Paulo, embora o Paulo viesse ter connosco aos fins-de- -semana. Além disto, são personalidades diferentes. Mas sempre, sempre, sempre houve um enorme entendimento entre nós. Lá em casa sempre houve uma aceitação da diferença.
Não se falava de determinados assuntos?

Havia discussões bestiais! E se calhar com muitos mais pontos de contacto do que as pessoas podem imaginar.
O amor sobrepõe-se às guerras políticas?

Na verdade, isto são coisas que já existiam no passado. O meu tio e o meu pai não partilhavam as posições políticas do meu avô. Na família Portas sempre houve posições divergentes e sempre vivemos bem com isso.
Chegou a votar em ambos? Há a ideia de que sempre esteve mais próxima das posições do Miguel.

Já votei no Miguel e já votei no Paulo. Muitas vezes, os votos são circunstanciais: naquela altura é importante que aquela força tenha poder para ser um contraponto a outra que sabemos que vai ganhar.
E falava com eles sobre o seu voto?

Claro. Sempre reagiram de forma muito natural em relação a isso. Normalmente, em noites eleitorais, ia ter com os meus irmãos quando perdiam. Lembro-me perfeitamente de uma noite em que fui ter com o Miguel à Rua da Palma e ele desabafar que estava a correr pessimamente, mas que estava pior para o Paulo. Dei-lhe um beijo e fui para o Largo do Caldas dar um beijo ao Paulo.
Com a morte do Miguel, sente muita falta desses momentos?
Alguma… [chora] Mas tenho os meus sobrinhos, dois miúdos incríveis, e nós temos essa responsabilidade. É a vida… O combate do Miguel foi uma grande lição. Ele sempre foi um lutador. Juntamente com o Paulo, são as pessoas mais lutadoras que conheci na minha vida. Há imensas semelhanças entre os dois. E essa, de nunca desistirem de lutar, é uma delas. A outra é o sentido de humor.
Tem falado muito com o Paulo sobre as eleições?

Por acaso, não. Andamos há um mês para nos encontrarmos e não conseguimos. A nossa relação, também com o nosso pai, sempre foi assim. Os nossos encontros de família sempre foram coisas muito curtas e muito intensas. Sobretudo as viagens para Vila Viçosa, a casa dos meus avós, onde passávamos férias.
Sempre falou muito das suas viagens e sempre se assumiu como uma viajante. Mas nos últimos anos há a sensação de que a viajante sossegou…

Sossegou, por várias razões. Acho que o mundo está a ficar cada vez mais igual. Depois, um dos sítios de que mais gostava no mundo, Goa, está inteiramente destruída pelos turistas. É por isso que o turismo me assusta tanto, porque assisti à destruição de muitas zonas da Ásia pelo turismo ocidental. O turismo de massas modifica os sítios para onde vai.
Trocou as viagens por outros luxos?
O meu luxo é o tempo. Acho que uma das razões porque tenho reticências em relação à possibilidade de o negócio crescer muito é pensar em que medida quero passar o resto da minha vida a trabalhar de manhã à noite.
Essa noção do tempo como luxo é algo que se aprende com a vida, sobretudo quando perdemos os que amamos?

Sim... A vida tira-nos muito tempo."

Texto: Raquel Carrilho
Fotos: Rodrigo Cabrita
jornal i

Sem comentários: